A menina e os três velhos

Caminhando pelo o percurso tradicional que fazia para ir ao trabalho, Carmélia viu uma cena cotidiana que nunca tinha lhe chamado a atenção até aquele momento. 
Na rua pacata, com aquele ar de cidade pequena e pessoas sentadas na frente de suas casas conversando sobre cada detalhe observado das vidas das outras, Carmélia viu os três velhos.
Os velhos, dois magros e um barrigudo, sentados em suas poltronas baixas de madeira  e com chápeus sobre suas cacholas, conversavam baixo e riam, por baixo dos grandes bigodes. Eles tinham aquele olhar de julgamento meio brincado que quase todo idoso mais simpático tem.
Olhavam as saias das mocinhas que  passavam e analisavam o quão pura elas eram apenas pelo comprimento das roupas. Mas claro que também ficavam embasbacados com as mulheres com roupas mais reveladoras, deixando para falar sobre a malícia delas apenas quando seu rebolado saísse de vista.
“Olha como se veste!! Depois ainda querem que os homens respeitem”
“Coisa de puta nova, ainda querem ter direito igual, vê se pode?!”
“Falta de respeito. Se fosse minha irmã na casa de mamãe, já tinha levado uma surra para aprender a se dar o respeito. Tô dizendo! Quer andar desse jeito e ainda se sentir no direito…”
No meio do debate sobre o quanto a moça de saia até o joelho merecia “qualquer coisa” que acontecesse com ela por causa de suas roupas desrespeitosas com os homens de família da rua, Carmélia reparou na mocinha que estava ali, ao lado dos três velhos.
Ela era jovem, devia estar nos seus 14 anos, algo assim, e era cabisbaixa, murcha.
Em momento algum a mocinha ergueu o olhar. Estava envergonhada.
Carmélia analisou a fotografia do momento. 
No cenário de fim de tarde, que infelizmente precedia o início da terceira jornada de trabalho da nossa batalhadora, havia os sujeitos, os velhos encaixados em suas cadeiras de velhos, e uma mocinha que parecia tímida ao lado deles. Cabelo curto, olhar no chão, camisa da cor do ponto alto da noite… e uma saia. 
Até os joelhos.
Pobre mocinha.
Ela provavelmente não tinha que conciliar três jornadas de trabalho para sobreviver, mas tinha suas próprias dificuldades que,  não que precisasse, mas logo foram reconhecidas por Carmélia.
Provavelmente ela tinha que acompanhar um dos velhos, que talvez fosse seu avó ou responsável, e como estava com uma roupa tão reveladora para eles, que pareciam nem perceber que tinha mais alguém ali, não podia sentar em uma das cadeiras baixas.
Cada crítica dita pelos velhos tinha o poder de, incrivelmente, baixar mais ainda o olhar da jovem, que parecia querer fugir dali para onde quer que fosse.
Estava reta, em pé, não podia se encostar na parede, sentar ou falar já que, acima de qualquer questionamento, mulher não deve se meter na conversa de homem para não acabar falando mulherisse.
Carmélia também murchou um pouco. Lembrou-se das próprias descobertas que fez durante o início de sua jornada de mulher.
Carmélia lembrou de quando o avô a mandara se calar na frente dos amigos  dele. Que mulher exibida ficaria sozinha na vida, nenhum homem ia querer mulher atrevida. Carmélia  também lembrou de como se sentiu nua na frente do olhar de um dos amigos do avô. De como se sentiu nojenta e suja, e de como brigou com a família.
Lembrou de como brigou com  a família por não tê-la defendido quando o amigo nojento apertou ela com força e tentou beijá-la. E de como lutou, chutou e arranhou o velho, como gritou e cuspiu nele logo antes de a família aparecer.
Carmélia lembrou de como correu para os braços da avó e de como doeu quando a mesma se afastou do abraço e pareceu irritada com ela.
A vida dela era simples, em todos os sentidos. 
A casinha construída com muito sacrifício que nunca parecia ter sido terminada. A rua de  terra e a ajuda que ela dava a tia limpando a casa dos vizinhos mais abastados, indo para escolinha pequena e amarela que parecia trazer toda vida que faltava na sua pequena cidade.
E mesmo assim, aos treze anos de idade, teve que amarrar tudo o que lhe pertencia,  e não era muito, em um pano gasto e fugido para casa da tia.
Era o mais perto que  ela tinha de uma mãe. 
Aos treze anos  Carmélia quase não sabia nada sobre a vida  além de que ela poderia ser muito dura ou  apenas dura. E também sabia que ninguém era obrigado a deixar que lhe tocassem sem que ela permitisse ou quisesse.
Ela não percebeu, mas estava chorando na parada de ônibus e as pessoas ao redor já tinham começado a reparar nela.
Respirou fundo, limpou as  lágrimas e andou até a mocinha.
O velho mais próximo da menina se levantou logo que percebeu o trajeto da desconhecida até a neta, então Carmélia notou como a cena toda parecia estranha. Uma estranha na parada chora e vai até uma jovenzinha.
Carmélia se desculpou com a menina, disse que confundiu ela com uma prima da cidade natal. Desejou força a ela e a disse que crescesse bem e apenas por si, disse que ela confiasse nos seus instintos e estudasse. 
A menina, que  finalmente tinha levantado o olhar, assentiu e ajustou a postura. 
Carmélia assentiu em resposta e seguiu novamente para a parada de ônibus do outro lado da rua, orando e acreditando que tinha alguma coisa ouvindo suas orações. Orando para que a vida da menina fosse apenas dura.
Já era mais do que toda a quantidade de desconhecidos que cruzara sua vida lhe desejara.
E ela queria fazer mais por essa e por outras meninas.
Mas era um plano para depois que encerrasse o terceiro turno. Ainda tinha muito chão para limpar antes de mudar a própria vida, para depois tentar mudar a vida de mais alguém.
Ela poderia chorar na volta para casa, sozinha. Mas agora tinha que, de novo, ir trabalhar.


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