O conto de Carmélia
Carmélia acordou em um lugar diferente do qual dormiu.
Não se engane, os móveis estavam no mesmo lugar, no mesmo quarto. No mesmo condomínio, mesmo bairro e cidade.
Mas as minúcias, os detalhes estavam todos diferentes dos quais ela recordava. A rede estava armada de um jeito diferente, quase desengonçado demais para ter sido colocada por ela. Os sapatos que havia usado no dia anterior estavam revirados em outro lugar, totalmente diferente de como ela, cotidianamente, guardava.
Carmélia sentou, no chão de seu pequeno quarto.
Pôs as pernas na posição de borboleta, como aprendera no curto período de duas semanas em que fez balé na infância. Fechou os olhos.
Respirou fundo.
Esvaziou a cabeça, se livrou de cada pensamento preocupante do que havia acontecido durante a noite que ela perdera.
O que mais assustou a jovem Carmélia foi que, de fato, a mente esvaziara. Não lembrou de modo algum de qualquer detalhe ou dica que pudesse dar uma leve indicação do que tinha acontecido durante a noite.
Carmélia lembrou de clarões, de acordar sem entender o que estava acontecendo e dormir logo em seguida, assim que fez essa constatação. Lembrou de barulhos ligeiros. Torcidas apertadas de cordas e empurrões.
É claro que em nenhum momento Carmélia viu, de fato, o que quer que fosse.
Tal fato a fez julgar que talvez fossem aquelas confusões comum de ocorrerem para quem tem um sono disperso, inquieto. Apenas o fato das mudanças no quarto lhe deram a dica de que alguma coisa havia acontecido durante seu sono.
Com o coração acelerado e um frio começando a lhe percorrer o corpo, Carmélia lembrou de algumas cenas.
O clarão moveu-se pelo quarto rapidamente. Não tinha formato nenhum, apenas um clarão andante.
Sentiu a rede na qual estava se movimentar de um jeito estranho, como se alguém levantasse a parte do punho da rede onde estava a rede, ouviu o barulho da corda da rede sendo apertada e posta de um ângulo muito esquisito, quase como se fosse para a rede cair sozinha. Era uma armadilha.
Toda a luz do quarto apagou.
Os barulhos cessaram.
Carmélia olhou ao redor para tentar detectar alguma coisa antes de dormir mas, em seu torpor, apenas sentiu um tremor e voltou ao seu sonho também confuso.
Quando acordou, voltou os pensamentos para o sonho que continha confusão com as duas das três de suas amigas preferidas. Elas estavam em uma festa, em um show, um vendedor de camisas assustador as mandava para um provador sem luz mas que, quando elas clicaram o botão para acionar a iluminação de lá, o provador ficou mais escuro ainda. Todas sentiram medo e correram desesperadas de volta ao show.
Mas o show não existia mais. E estavam as três, perdidas em uma rua mal iluminada, sem qualquer transporte passando pela avenida que já fora movimentada.
Se entreolharam e correram.
Do quê? De ser mulher em uma rua escura.
De quem? Qualquer um que também não fosse uma mulher assustada em uma rua escura.
Para onde? Para qualquer lugar no qual elas pudessem ter uma mera perspectiva de salvação do medo que sentiam.
Nossas mocinhas fugiam, desesperadas e sem rumo, apenas juntas.
Acordou.
Olhou ao redor e percebeu as pequenas mudanças.
Questionou-se sobre ter paralisia do sono, já era recorrente para ela. Ou será que ela havia voltado a ter os episódios de sonambulismo? Também coerente, já que as coisas estavam em locais opostos e desordenados do que ela havia organizado na noite anterior.
Ou loucura. Loucura sempre era o fantasma de Carmélia. Essa perspectiva sempre a assustava.
Com os olhos arregalados e a respiração profunda Carmélia finalmente encontrou a resposta que procurava para o que ocorrera.
O peito congelou, junto com Carmélia, que agora torcia para que a verdade que lhe fora revelada fosse apenas uma loucura momentânea, já que a realidade, agora óbvia, lhe assustava mais do que qualquer outra coisa.
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